Brincar, Uma Atividade Tão Importante
Quem não foi criança um dia e não brincou de pega- pega, mãe da rua, queimada, lenço atrás, esconde- esconde, roda, bola? Quanta alegria! Quanta felicidade!
O quanto aprendemos durante tais atividades. Descobrimos o prazer do divertimento, a satisfação da descoberta e da conquista, o respeito ao convívio e às regras sociais, a alegria da partilha e da cooperação, a ansiedade e o medo da competição, os riscos do desafio e tantas coisas mais... Até parece que a atividade fez parte de uma galáxia diferente ou de uma civilização perdida no tempo e no espaço.
No final do último século a sociedade passou por inúmeras transformações e a expansão do conhecimento em níveis cada vez mais altos de especialização, condição esta necessária para o progresso da ciência.
Diante de tanta transformação mudamos nós e mudaram as nossas crianças. Delas têm se exigido uma série de conhecimento e habilidades que têm feito com que suas agendas estejam sempre lotadas e, o que é pior, as atividades lhes são impostas ou atribuídas. Pobres crianças; estão perdendo o direito à infância e especialmente ao brincar.
Com frequência tenho me perguntado: Será que as crianças ainda brincam? Por que o fazem? Onde estão os espaços? Existe um tempo para divertir-se fantasiar, imaginar, sorrir e criar? Como recuperar a cultura do brincar? Como auxiliar pais e educadores nessa trajetória?
Isso não parece uma tarefa tão simples; por essa razão, neste artigo pretendemos discutir o que é brincar e até que ponto ele é praticado pelas crianças dos dias atuais. Hoje muito se fala sobre a atividade lúdica e a sua relevância para o desenvolvimento das crianças, mas será que ela é realmente praticada? E o que é de fato o brincar? Muitos autores afirmam que o brincar representa para a criança o que o trabalho representa para o adulto.
Podemos dizer que brincar é uma atividade universal realizada pelos pequenos em diferentes épocas em todas as partes do mundo. Provas de sua existência estão nos túmulos das próprias crianças ou de seus mestres. Pequenos egípcios, gregos e romanos brincaram com bolas, arcos, animais e até mesmo bonecas confeccionadas com vários materiais. Usavam desde o barro, tecidos, madeira, ossos, ouro e marfim. Bolas foram encontradas em diversas civilizações. Entre os egípcios, por exemplo, eram feitas com argila e possuíam pedras dentro para estimular os pequenos.
Entre os gregos, encontraram-se ânforas cujos desenhos representam Zeus jogando bola com sua ama. O grande historiador Homero falou sobre esse objeto quando narrou em sua obra Odisseia o naufrágio de Ulisses, que ao acordar na Ilha de Ítaca, encontrou Nausica jogando bola com suas damas.
O rei Afonso X, de Castela e Leão, na Espanha, deixou como legado o famoso Livro de Jogo. Também o pintor flamengo Peter Bruegel, no século XVI, pintou uma interessante obra, Jogos infantis, na qual retratou cento e sessenta e oito meninos e setenta e oito meninas brincando.
Contudo, apesar do encanto da brincadeira e na tentativa de muitas autoridades, estudiosos e artistas em preservá-la, parece que encontramos hoje uma grande dificuldade em relação à realização de tal atividade.
Vivemos um grande paradoxo em relação à atividade lúdica, pois ao mesmo tempo em que vem aumentando sua relevância, observa-se a diminuição de sua prática.
Um dos problemas que nos parece mais comum e que de certa forma se constitui em um dos obstáculos ao brincar é o fato de que não há um consenso entre os diversos estudiosos sobre o assunto. Todos concordam e apontam sua relevância, mas divergem em relação ao conceito.
Identificar o brincar, de modo especial na infância, parece ser uma tarefa simples, porém ela é de extrema complexidade. Os estudos sobre o assunto mostram diferentes visões, muitas vezes complementares, porém sem a existência de consensos.
Em uma perspectiva etimológica a palavra brincar originou-se do latim “vinclu, vincru, vincro”, que indica laço ou vínculo. Não resta dúvida que uma de suas características principais é, justamente, o estabelecimento de laços que envolvem tanto aspectos emocionais, sociais e físicos quanto culturais. Contudo, isso não parece suficiente para esgotar o assunto.
Existem inúmeras tentativas de conceituar e identificar melhor a ação. A maioria dos estudiosos tentou caracterizá-la para defini-la de uma forma mais precisa, o que não foi suficiente.
A palavra, na maioria das vezes, é empregada como sinônimo de jogar, termo utilizado para designar diversas atividades que possuem um caráter lúdico, isto é, que envolvem simultaneamente divertimento, movimento, seriedade, liberdade, prazer, regra, imaginação, imitação e realidade.
Na tentativa de conceituá-lo adequadamente Henriot (1983) mostrou que brincar é aquilo que faz aquele que brinca e somente ele sabe que está brincando. Há, portanto, um limite muito tênue entre o brincar e o não brincar, que de acordo com a maior parte dos estudiosos parece estar caracterizada pela existência do prazer, da liberdade de escolha, do divertimento.
Também Winnicott (1982) é um dos defensores dessa ideia, mostrando que tal atividade pode ser enriquecida através de materiais e experiências e que as crianças são capazes de encontrar objetos e inventar brincadeiras facilmente. Para ele, elas brincam por prazer. É dessa forma que adquirem experiência; logo, brincar faz parte da vida. Outra peculiaridade da atividade lúdica, segundo Huizinga (1942) é a liberdade de escolha. Tal característica para Piaget (1978) é responsável pelo desenvolvimento da independência e da autonomia infantil. Além disso, ela permite que se estabeleça uma relação entre o mundo interior e o exterior, pois faz com que a criança explore e conheça o mundo que está ao seu redor, o internalize através de imagens mentais para depois representá-lo de diversas maneiras, entre elas a brincadeira.
Durante muito tempo pensou-se que tal ação era uma das formas de a criança gastar energia. Porém, segundo Lima (1992), o brincar tem, entre outras coisas, uma função social, porque ajuda o ser humano a inserir-se no seu grupo e na sua cultura. As crianças nascem em uma cultura que já está pronta e dela devem participar e se inserir. É durante a brincadeira que esse processo ocorre e que elas conseguem fazer parte do grupo, além de contribuir para a perpetuação e para a transformação da cultura.
Há várias formas de as crianças brincarem. Desde pequenas brincam, por exemplo, com seu próprio corpo. Movimentam braços e pernas, balbuciam, tentam imitar os sons produzidos pelas pessoas que estão no seu entorno. Buscam se relacionar com os adultos. Brincam pelo prazer da ação. Assim, o movimento é, especialmente para a criança pequena, uma forma de expressão, permitindo que se evidencie a relação entre ação, pensamento e linguagem.
O brincar, atividade primordial da infância, estrutura-se basicamente na ação que não é apenas física, mas mental. Ela é a base para a formação de conhecimentos. Tal ação ocorre dentro de limites de tempo e lugar, auxiliando o desenvolvimento de experiências, conceitos, pensamento e linguagem.
A atividade lúdica é, também, uma forma de comunicação e expressão das crianças que favorece o conhecimento de si próprias, a interação com o contexto, a aprendizagem das normas sociais e o desenvolvimento das funções simbólicas e, daí, as funções mentais. Brincando as crianças tentam comunicar ideias e pensamentos que muitas vezes não conseguem fazê-lo através da linguagem.
Segundo Piaget (1978) a brincadeira simbólica constitui a maior prova do desenvolvimento da inteligência na criança, pois ela deixa de imitar os objetos ou pessoas na sua presença como fazem outros primatas, para representá-los na sua ausência, exigindo a função simbólica característica da espécie humana.
Para Chateau (1987) infância é o momento adequado para a aprendizagem para a vida adulta e é através da brincadeira que isso acontece.
Vigotsky (1988) também mostrou que o brincar tem uma enorme influência no desenvolvimento da criança, porque ele adquire significado, permitindo à ela operar em um plano de representação. Assim, é possível aos pequenos atuarem sem separar a situação imaginária da vida real.
Bettelheim (1988) apontou o quanto o brincar é uma ponte para a realidade. Logo, ele faz parte do esforço dos pequenos para entenderem o mundo. Para o estudioso, é brincando que a criança percebe e entende o mundo que está à sua volta, age de uma maneira agradável, mantém o sentimento de bem estar e de prazer. É assim que ela consegue resolver problemas aparentemente insolúveis, preparando-se para a realidade.
Brougère (1998), um dos grandes estudiosos do assunto, tentou conceituar o jogo dentro de uma perspectiva sociológica, mostrando que o termo é polissêmico. Para ele a atividade pode ser considerada:
a) Como resultado de um sistema linguístico, isto é, aquilo que um determinado grupo em um dado momento considera como sendo jogo. Ele é, portanto, um fato social e assume o sentido e a imagem que a sociedade lhe atribui.
b) Como um sistema de regras, pois apresenta uma estrutura sequencial que determina a sua especificidade, como o xadrez, por exemplo. Existem regras estruturadas que o tornam diferente de outras modalidades lúdicas.
c) Como um objeto, a boneca materializa a casinha, por exemplo.
Chateau (1987) mostrou que o jogo depende da atividade adulta, pois, por não poder trabalhar, a criança vai imitar os mais velhos em suas ações. É por essa razão que maior parte das atividades observadas durante a brincadeira simbólica, nada mais são do que aquelas realizadas pelos adultos.
Em uma pesquisa realizada por Carneiro e Dodge (2007) ficou muito claro que há grande dificuldade em conceituar o que é brincar, tanto entre os pais, quanto entre educadores e especialistas. Talvez esse seja um dos maiores problemas em relação à sua prática nos dias atuais. As autoras afirmaram que a brincadeira é para a criança uma atividade gratuita, que produz prazer imediato e que se associa a ideia de infância. No entanto, o fato de ser uma atividade graciosa e interessante, parece, para a maioria das pessoas, que não tem valor. É justamente a liberdade de escolha e o prazer que ela produz que fazem com que as descobertas advindas da atividade se tornem significativas, permitindo uma verdadeira aprendizagem por parte da criança.
Para Câmara Cascudo (s/d), o termo “jogo” é uma expressão popular utilizada para designar o jogo de cartas, contudo, como sinônimo de brincadeira o uso do vocábulo é recente. Para o autor, a atividade dificilmente desaparece, pois é uma herança cultural, transmitida oralmente, por vezes abandonada em algumas gerações, recuperada e modificada em outras.
Mundialmente costuma-se chamar jogo a atividade lúdica vista como sinônima da brincadeira, embora uma observação empírica possa mostrar que, especialmente entre os educadores, enquanto o primeiro possui regras fixas, a brincadeira é mais livre. Enquanto o jogo caracteriza-se por ser um meio para atingir a um fim e, em geral, envolve competição, a brincadeira possui um fim em si mesma, favorecendo ações mais cooperativas e descontraídas.
Há uma grande tendência, também, em considerar brincar apenas as atividades que envolvem o faz-de-conta, isto é, ao que Piaget (1978) denominou de jogo simbólico, que põe a imaginação em ação. É importante considerar que apesar de sua flexibilidade e da possibilidade do desenvolvimento da fantasia infantil, esse tipo de atividade também possui regras para a sua realização.
O simbolismo exige o conhecimento e a compreensão do mundo exterior, o que certamente pressupõe um processo de internalização e de codificação para que se possa criar e recriar, pois o jogo não envolve apenas a imitação, mas outros processos mentais... ( Carneiro, 1992:76).
Diante de todas as considerações feitas anteriormente, brincar é um processo dialético por apresentar quatro características importantes: o movimento, a contradição, a mudança qualitativa e o contexto.
Em relação à primeira característica, o brincar é próprio da natureza humana e permite que a criança se desenvolva integralmente do ponto de vista das funções mentais superiores. Isso ocorre porque o movimento nada mais é do que uma ação, não apenas física, como mental. Ele resulta contradição, segunda característica, porque ao brincar as crianças passam rapidamente do riso ao sério, da liberdade à regra, da fantasia à realidade, da produtividade à improdutividade.
Brincar permite a transformação do ser humano, mostrando a sua superioridade entre os outros seres vivos. E o seu desenvolvimento é nitidamente percebido através da aquisição de um sistema simbólico e de um processo de comunicação elaborado, explicitando o quanto o lúdico é uma linguagem dos pequenos.
Enquanto atividade livre o brincar implica em decisões a serem tomadas pelo próprio sujeito, facultando a manutenção ou a alteração dos objetivos, provocando mudanças qualitativas no desenvolvimento humano e na inteligência. Nesse sentido, concordamos com Schiller (Apud Chtreau, 1987) para quem o homem só é homem porque brinca.
Finalmente a quarta e última característica da dialética é que o brincar ocorre dentro de um contexto no qual os pequenos estão situados e que, geralmente, reproduzem a cultura além de recriá-la.
Apesar da dificuldade em relação à conceituação, não se pode negar que o termo brincar é atribuído a diferentes atividades de acordo com época, local ou objetivos pretendidos.
Portanto, é muito comum o uso dos termos jogo e brincadeira como sinônimos. Apesar de tanta polêmica em relação às palavras e independentemente do uso do termo vale a pena considerar a necessidade de deixar a criança brincar porque faz parte da sua natureza, além de promover seu desenvolvimento e sua aprendizagem.
Infelizmente, a passagem do século XX para o século XXI tem nos mostrado uma série de mudanças em relação à atividade lúdica. Com o crescimento da industrialização e da urbanização diminuíram os espaços e os tempos de brincar. Os pequenos têm agendas superlotadas, com atividades dirigidas, não podendo realizar aquilo que mais gostam: brincar. No pouco tempo disponível para que isso ocorra, em geral, brincam sozinhos, não possuem ninguém para compartilhar. Pobres crianças...!
Assistir TV e passar um tempo na internet passou a ser uma nova modalidade de brincar na sociedade pós-moderna. Não que isso não deva fazer parte das atividades infantis em um mundo globalizado e informatizado, mas até que ponto tais ações podem ser consideradas lúdicas? Será que as crianças não estão muito expostas às diferentes mídias sem nenhum critério? Não estamos criando mini adultos ao invés de proporcionar aos pequenos o gozo pleno do seu direito à infância? Temos que refletir sobre essas questões.
É importante perceber que a escola é, hoje, dos poucos espaços que eles possuem para o lúdico. Ele está cada vez mais excluído da instituição e quando ela oferece a possibilidade de brincar, quase sempre é dirigido sem que as crianças possam fazer suas próprias escolhas.
Os professores sentem-se pressionados pela administração e pelos pais, além da necessidade de desenvolverem um currículo imposto socialmente e, por vezes, totalmente inadequado e desinteressante às crianças. Mostram-se inseguros, sem repertórios, pouco conhecem sobre o assunto.
As áreas públicas tornaram-se perigosas e os quintais, quase não existem mais.
Os pais, mais preocupados em favorecer rapidamente o ingresso de seus filhos no mercado de trabalho, esquecem-se que eles precisam brincar e ter infância.
É fundamental que repensemos o brincar de nossas crianças se quisermos ter uma infância mais sadia, mais criativa e, especialmente, mais feliz.
Você Sabia?
Por Maria Ângela Barbato Carneiro, licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo, Maria Ângela Barbato Carneiro possui Mestrado em Educação na PUC. SP e Doutorado na área de Ciência da Comunicação e Artes da USP.