Mudamos Nós Ou Mudaram As Crianças?
Desejo com este portal muito mais que fazer um registro das brincadeiras e canções que venho colecionando desde criança e pesquisando há quase 40 anos.
Desejo muito mais que publicar partituras, roteiros de brincadeiras e contar histórias sobre essa antiga, que se torna novíssima, maneira de brincar.
Desejo partilhar a experiência de mais de 6.000 shows bailes com crianças, de mais de 300 capacitações de multiplicadores e mais de 16.000 oficinas de arte-educação, onde a cultura da brincadeira, concebida pelo povo brasileiro, nos mostra que muito temos que aprender com o passado, para construirmos o futuro.
Ao longo de 40 anos tenho interagido com milhares de crianças; às vezes, presas a um leito de hospital, abatidas pela quimioterapia, ou soltas e livres nos parques; descalças, roupinhas rasgadas, ou com trajes de grife nos aniversários e eventos sociais; nas escolas, creches, orfanatos; de rostos corados, pegas, às vezes, nas ruas com expressões de surpresa, acanhamento ou respeito, com medo de ser e de se surpreender criança.
Numa sociedade que investe num amadurecimento precoce e exigente, impondo um modelo de pequeno adulto a ser seguido, um sentimento de descoberta e perplexidade perpassa essa experiência em toda sua extensão e intensidade.
Os sorrisos, a princípio tímidos, os olhos brilhando, escondidos, as faces coradas, corações aos pulos. Os medos de errar, de não saber, de não ser o melhor. Aos poucos, as mãos atam-se num forte aperto. Um segura o outro, os olhares se cruzam, observam os pés dos companheiros, cantam timidamente.
Vão se deixando vencer pela irresistível vontade de brincar. Caem na roda, mas não sabem o próximo passo. Deixam-se ensinar. As mãos unidas amparam, puxam e empurram a roda que cria e recria essa nova relação. O companheiro é um parceiro sem o qual a roda fica incompleta e perde seu trajeto natural.
O riso solto, a gargalhada, o canto ofegante e até cansado, o entusiasmo toma conta dos pequeninos que reaprendem a cantiga de roda, sua brincadeira, sua coreografia descomplicada e ao mesmo tempo exigente.
A música que retoma conhecimentos do colo explode de alegria. Ciranda, cirandinha vamos todos cirandar!
O que tem de diferente a criança do terceiro milênio? Será que o acesso à internet, a velocidade das comunicações, o conhecimento precoce sobre temas como clonagem, violência, transplantes e sequestros está mudando a natureza infantil?
No contato com milhares de crianças, percebo que elas não mudaram. Têm um olhar encantador de manhãs douradas, têm mãos inquietas como as do criador, têm sorrisos abertos e doces como a brisa da tarde. Ganham tempo olhando formigas, sentindo o cheiro e o gosto da terra, e provando o orvalho.
Mudamos nós, que deixamos de falar de estrelas, sacis e cucas, que esquecemos de olhar o céu, de ver o manto estrelado da noite, de pensar nas cores dos peixinhos do mar, nos brilhos dos raios do sol, nas cores do arco íris.
Ficamos estáticos, deixamos de voar nas asas das borboletas e dos pirilampos. Trocamos a leveza dos sonhos e da fantasia pelo peso de uma realidade que cai sobre nossos ombros e nos paralisa de tanto cansaço. A nossa verdade ficou dura e a nossa realidade cinzenta.
Mudamos nós que apressamos a vida, que contabilizamos sorrisos, olhares, palavras e dinheiro, que fazemos das crianças seres como nós, que impomos etapas queimadas, que lhes impingimos agendas cheias de horários estressados, roubando deles o tempo e o espaço de ser criança, a ternura e descomplicação de um ser que tem que ter seu tempo de crescer normal para existir completo.
Mudamos nós, quando nos conformamos com o que foi feito das nossas crianças: pequenos adultos com gastrite e colesterol alto, presos em apartamentos, longes do sol, expostos à solidão do brinquedo eletrônico; aprendendo a vencer para não ser vencido, a matar para não ser morto, a confundir a vida real com a realidade virtual.
Se brincando a criança exercita a vida, como será a consequência na vida social de uma brincadeira sem o toque, sem a tensão dos contrários, sem o espaço de saberes diferentes e até conflitantes, sem espaços livres?
Vejo claramente, porque há 40 anos trabalho com crianças, que o folclore infantil brasileiro precisa ser reconhecido como um saber fundamental para a sociedade, pois possibilita a retomada de paradigmas importantes, capazes de recriarem valores fundamentais para a construção de uma sociedade de iguais. Ao contrário do que muitos pensam, as tradições do passado têm muito a nos ensinar, visando o futuro.
Essa velha novíssima maneira de brincar abre espaço para a construção de uma experiência de brincadeira rica de contrários, mas complementares. Certamente fará nossas crianças mais solidárias e participativas, abertas ao novo, criativas, produtoras da sua própria cultura da brincadeira, sendo o contraponto necessário à passividade da brincadeira eletrônica. Impossível negar o valor da cultura digital na brincadeira e para a infância, mas inegável a necessidade da brincadeira livre e coletiva para a saúde física, mental e social das novas gerações.
A prática do folclore infantil com as crianças resgata nossa qualidade de brincantes, nos devolve a alegria das pequenas coisas. Nossos olhos vão se encher do brilho das estrelas, teremos medo somente do simbólico bicho papão, do curupira, da mula sem cabeça. Nosso coração vai esquentar com o toque de outros corações e vamos rir; rir até não poder mais, de simples e pequeninas coisas.
Na minha visão, a prática da brincadeira tradicional tem a lembrar-nos o nosso sentimento de pertença, que faz de nós mais que conviventes; companheiros, parceiros, colegas, faz de nós um povo que tem alma e se emociona.
Cirandar é dar as mãos, rodar no sentido do relógio, na rota do planeta.
Você Sabia?
Histórias africanas são, em geral, explicativas das relações com a vida e o entendimento dos seus fenômenos.